sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Quero fazer o elogio do amor puro.


Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de pratica. Porque da jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque e mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calcas e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pre-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e a mínima merdinha entram logo em "dialogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-socio-bio-ecologica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, e na medida do possível. O amor tornou-se uma questão pratica. O resultado e que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tao embrutecidos, tao cobardes e tao comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raca de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "ta tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcacadores de compromissos, bananoides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. já ninguém se apaixona? já ninguém aceita a paixao pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilibrio, o medo, o custo, o amor, a doenca que e como um cancro a comer-nos o coracao e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor e uma coisa, a vida e outra. O amor não e para ser uma ajudinha. Nao e para ser o alivio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "da la um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporanea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se ve romance, gritaria, maluquice, facada, abracos, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor e amor. E essa beleza. E esse perigo. O nosso amor não e para nos compreender, não e para nos ajudar, não e para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. E uma questão de azar. O nosso amor não e para nos amar, para nos levar de repente ao ceu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.

O amor e uma coisa, a vida e outra. A vida as vezes mata o amor. A "vidinha" e uma convivencia assassina. O amor puro não e um meio, não e um fim, não e um principio, não e um destino. O amor puro e uma condicao. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Nao da para perceber. O amor e um estado de quem se sente. O amor e a nossa alma. E a nossa alma a desatar. A desatar a correr atras do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor e uma verdade. E por isso que a ilusao e necessaria. A ilusao e bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor e uma coisa, a vida e outra. A realidade pode matar, o amor e mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coracao apanha-se para sempre. Ama-se alguem. Por muito longe, por muito dificil, por muito desesperadamente. O coracao guarda o que se nos escapa das maos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta la quem se ama, não e ela que nos acompanha - e o nosso amor, o amor que se lhe tem.

Nao e para perceber. E sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperanca, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Nao se pode ceder. Nao se pode resistir.

A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não.
So um mundo de amor pode durar a vida inteira. E vale-la também.




Miguel Esteves Cardoso